Nova Lei de Recuperação Judicial não dá superpoderes ao Fisco

Dezembro 2, 2021
Murillo Lobo

Após 15 anos de vigência da Lei nº 11.101/05, o Congresso Nacional aprovou um importante pacote de medidas que, sancionado pelo presidente às vésperas do Natal de 2020, incorporou ao ordenamento a Lei nº 14.112.

Uma das mudanças mais polêmicas desse novo diploma legal diz respeito aos poderes do Fisco na reformulada e revigorada Lei de Recuperação Judicial e Falências.

Não são poucas as notícias veiculadas por jornais, revistas e sites alardeando a mudança de patamar do Fisco no processo falimentar, sugerindo que este teria sido alçado ao Olimpo jurídico e adquirido “superpoderes” dignos dos grandes deuses da Justiça [1] [2].

O que se propõe a analisar neste breve ensaio é se essas ilações têm fundamento e responder a uma pergunta simples e direta: o Fisco ganhou superpoderes com a edição da Lei nº 14.112/20?

Para que seja possível responder a essa questão é preciso relembrar o papel do Fisco no concurso de credores ao longo da nossa história republicana. Lembra-nos Trajano de Miranda Valverde [3] que, até o advento da Lei nº 2.024, de 17/12/1908, a falência só poderia ser decretada com fulcro em dívida mercantil.

Inobstante a prevalência desse mesmo entendimento de que a Fazenda Publica não poderia requerer a falência de contribuinte inadimplente na vigência do Decreto-Lei nº 7.661/1945, a matéria nunca foi pacífica nem mesmo no STJ [4], a quem compete por disposição constitucional uniformizar o entendimento acerca da aplicação da lei federal (cf. artigo 105, III, “a” e “c”).

Um outro registro importante diz respeito a evolução jurisprudencial que levou a vedação da pretensão do Fisco de convolação da recuperação judicial em falência em razão da ausência das certidões negativas fiscais a que se refere o artigo 57 da Lei 11.101/05.

Acórdão recente da 3ª Turma do STJ, da lavra da ministra Nancy Andrighi [5], joga luz e lança um novo entendimento sobre o tema, dispensando a exigência de apresentação de certidão negativa de tributos (e, logo, a possibilidade de convolação em falência por débitos tributários), entendendo que a falência não favorece a Fazenda Pública (que se encontra em terceiro lugar na ordem de classificação dos créditos) e que tal medida penaliza a devedora excessivamente; e, aplicando o princípio da proporcionalidade, afirmou que deve prevalecer o princípio da preservação da empresa (artigo 47) frente à exigência do artigo 57 da lei de quebras, o que seria mais consentâneo com o fim social da lei.

Essa decisão inovadora, ao abrir uma nova brecha na lei e trazer perspectiva mais favorável aos devedores, com potencial de sepultar de vez o artigo 57 da Lei nº 11.101/05 (e o artigo 191-A do Código Tributário nacional), foi objeto de forte reação pela União, que protocolou diversas reclamações junto ao STF, sendo que, à exceção da Reclamação nº 43169/SP, relator ministro Dias Toffoli (já rejeitada por tratar de matéria infra constitucional), nas demais não se observa qualquer discussão sobre a constitucionalidade do artigo 57 da Lei 11.101/05, mas somente afronta ao enunciado da Súmula Vinculante 10.

Sob outro aspecto, tem-se que a Lei nº 10.522/2002 — que dispõe sobre o cadastro informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais e dá outras providências —, na esteira das alterações promovidas pela Lei de Recuperações Judiciais e Falências teve alterada a redação do artigo 10-A, que passou a prever um parcelamento dos débitos com a fazenda nacional, de natureza tributária ou não tributária, constituídos ou não, inscritos ou não em dívida ativa — em 120 meses.

O §4º-A prevê as consequências da exclusão do parcelamento, destacando-se entre elas a faculdade de a Fazenda Nacional requerer a convolação da recuperação judicial em falência.

De todas as inovações em matéria tributária, sem dúvida a mais polêmica é essa, e que confere inéditos poderes ao Fisco de pedir a quebra do contribuinte se este for excluído do parcelamento, medida claramente excessiva e desproporcional.

Isso porque são inúmeras as possibilidades de exclusão do parcelamento, o que fragiliza sobremaneira a posição do devedor em recuperação judicial, e abre caminho para, de forma inédita no nosso ordenamento, a quebra se dar com base não em um dívida mercantil, como sempre foi desde os tempos do Império, mas com lastro em débito tributário inadimplido.

Esse dispositivo é claramente inconstitucional, eis que viola o artigo 170 da Constituição Federal, que privilegia a valorização do trabalho (caput) e a busca do pleno emprego (inciso VIII), além de contrariar os princípios maiores da Lei 11.101/05, insculpidos no artigo 47.

Em um outro movimento de reforço à posição do Fisco, o legislador ordinário retirou do juízo do processo de recuperação a competência para liberar penhoras determinadas por outros juízos de execuções fiscais. Na nova sistemática introduzida na Lei 14.112/20, o juízo da recuperação judicial passou a ter competência somente para autorizar ao devedor a substituição de bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial penhorados na execução fiscal, por um outro que seja suficiente a garantir a ação (artigo 6º, §7º-B).

Conclusão
A reforma da Lei de Falências e Recuperação Judicial pela Lei nº 14.112/2020 trouxe inegáveis avanços e conquistas tanto para as empresas em recuperação judicial quanto para os credores, que viram implantadas novas regras tendentes a agilizar o encerramento do processo, atrair investimentos, coibir fraudes e evitar a utilização da recuperação judicial para deixar de pagar tributos.

Do conjunto de mudanças verifica-se que o Fisco foi nitidamente favorecido com um conjunto de regras que lhe permitem maior eficiência na cobrança de seus créditos e maior poder de pressão sobre as empresas em recuperação judicial, inclusive com a possibilidade de convolação da RJ em falência em caso de não pagamento do parcelamento tributário.

Todavia, esse poderes conferidos ao Fisco não são suficientes a elevá-lo ao patamar de um “supercredor”, considerando a jurisprudência majoritária do STJ que dispensa a apresentação das certidões negativas de tributos como condição para homologação do plano de recuperação judicial, o que assegura às empresas em recuperação judicial a opção de não parcelar os impostos em atraso para não correrem o risco de serem pressionadas com pedido de falência por parte do credor fazendário.

Da mesma forma, a norma que limita os poderes do juízo da recuperação judicial de afastar a penhora sobre bens essenciais da recuperanda ainda será objeto de uniformização pelo STJ, que já estava em vias de consolidar o entendimento em sede de julgamento de repetitivos (Tema 987), com nítida tendência pela preservação da empresa em detrimento do crédito tributário, mantendo o atual entendimento majoritário sobre a questão.

No entanto, o entendimento já firmado até agora pelo Superior Tribunal de Justiça em relação ao artigo 57 da LFRJ (exigência de certidões negativas de tributos), a posição do Supremo Tribunal Federal de que a matéria é de competência exclusiva do STJ e os diversos precedentes favoráveis aos devedores nessa corte que levaram à afetação do Tema 987 sinalizam que a Lei 14.112/20 não irá alterar o quadro atual, e o fisco não terá “superpoderes” para cobrança de seus créditos, prevalecendo, assim, o princípio da preservação da empresa sobre o crédito tributário.

O tempo dirá se essa opinião está correta

[1] Fisco ganha superpoder com entrada em vigor da nova Lei de Falências | Legislação | Valor Econômico (globo.com).

[2] Nova Lei de Falências amplia segurança jurídica, mas superpoder do Fisco gera tensão | Exame.

[3] Comentários à Lei de Falências: (Decreto-lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945) / Trajano de Miranda valverde – 4ª ed. rev. e atualizada / por J. A. Penalva Santos e Paulo Penalva Santos. – Rio de Janeiro: Forense, 1999, vol. 1, p. 43.

[4] Revista do STJ, 84/179.

[5] REsp 1864625/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/06/2020, DJe 26/06/2020.

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